Héctor Enrique Giana
Corria o ano 1917 e Habib, que havia nascido em Amioun El Koura, no Líbano, voltava de navio desde Argentina para casar-se com uma donzela libanesa que lhe havia sido prometida anos antes. Ao chegar, a moça que escolhera 2 anos antes e que deveria ser sua esposa havia-se casado com outro. Voltou para Argentina a continuar trabalhando para merecer uma das irmãs remanescentes da família Dib. Parece que havia outra irmã maior que também havia sido prometida a ele antes de viajar, mas quando voltou, em 1928, casou-se com Faride, a caçula de 16 anos de idade da família Dib e, após mais um ano, voltou para Argentina, abrigando um filho em seu ventre que nasceria pouco tempo depois. Dois anos mais tarde, já em um povoado de Córdoba, na Argentina, nascia Irma, a segunda filha do Clã.
Na mesma época, em 1924, o Italiano Juan, que havia vindo de Rocaforte Mondovi, do Piemonte italiano, residente na Argentina, casou-se com Carmen, uma Espanhola de Fuente La Higuera, do sul da Espanha, prima segunda de Salvador Dalí, o pintor surrealista. Após o nascimento do primeiro filho, em 1929 nasceu Marcelo, o terceiro filho do Clã.
Em 1950, em Córdoba, na Argentina, Marcelo e Irma se casavam, e um ano mais tarde, em 1951, nascia o primogênito da família, eu mesmo. Mistura que era de sangue libanês com o otomano espanhol da interface entre Murcia e Valencia, e o piemontês do norte da Itália, miscelânea rebuscada de raças díspares, conheci o mundo que hoje me abriga.
Nasci num pequeno povoado de pouco mais de 2.500 habitantes, em berço de ouro, como dizem, pela boa e florescente situação econômico-financeira que minha família possuía. Pouco tempo depois, a incipiente crise que assolou o país - e minha família não escapou desta praga - deixou-me literalmente na lama, aos poucos anos de idade. Sofri muito pela falta do entendimento racional da situação; como podia um dia haver comida na mesa e no outro não? Por que não podia ter aquele brinquedo ou o par de sapatos que meu amigo possuía? Numa mente infantil são coisas incompreensíveis.
Demorei um bocado para ter consciência de que eu existia, mas no fundo sabia que um dia iria encontrar-me comigo mesmo e colocar as coisas no seu devido lugar. Digo isto por que desde muito cedo olhava para as estrelas e me perguntava o motivo pelo qual elas estariam ali, sem cair nas nossas cabeças. Quando perguntava a algum adulto, a resposta era invariavelmente a mesma: - por causa da gravidade -. Nesta época gravidade para mim, significava uma coisa muito grave e mal feita! ...Pode? Comecei a perceber que palavras iguais tinham significados diversos, então comecei a prestar mais atenção aos meus dias e às minhas parcas leituras.
Como provinha de uma tradicional família Judaico-Cristã, frequentei um colégio de Padres que funcionava como um seminário com futuros sacerdotes católicos, Salesianos, da Ordem de Dom Bosco. Minha infância transcorreu entre catecismos, corais eclesiásticos, fabricação de hóstias e jogos infantis, além de haver sido coroinha e declamado e cantado a missa em Latim durante 8 anos. A presença de Deus em meu espírito se limitava à obrigação de rezar antes de dormir e assistir à missa de domingo, observando no átrio do altar um desenho com a figura de um grande homem de cabelos brancos e olhar severo, flutuando entre brancas nuvens, e preanunciando enormes castigos se não se seguissem seus muitos preceitos, os quais eram lembrados diariamente pelos padres a título de bom comportamento.
Por outro lado, os Mestres da Igreja, que mais tarde percebi que eram pessoas iluminadas, estavam representados por quadros nas paredes e numerosas estátuas de barro ou madeira, pintadas adequadamente, chamados de Santos, e cuja história era contada freqüentemente nas salas de aula da escola eclesial. Tudo isto, quando se tem 8 anos de idade, faz com que a pressão exercida e a obsessão insana de repassar a idéia do catolicismo tradicional, atue de modo contrário ao desejado. Depois de muitos anos de missas diárias, figuras, cânticos e rezas, nunca mais entrei numa igreja como assistente.
Cresci de forma nômade e itinerante, se assim podemos dizer, já que além de mudar de residência com frequência, mudamos de cidade várias vezes em poucos anos. Isto ampliou meus horizontes pouco desenvolvidos devido ao ínfimo tamanho da minha cidade natal, mas como as outras também eram acanhadas, a amplitude de meu ser ainda continuaria reduzida por um bom tempo. Esta situação começou a se modificar quando o acaso ou o destino fizeram com que fosse internado compulsoriamente num colégio de ensino médio, o Leo Bovisio, situado numa fazenda a uns 50 quilômetros de distância de minha cidade de residência. Nessa época eu já tinha 14 anos e olhava a vida como se ela existisse somente para mim. Tal vez esse foi o motivo pelo qual meus pais decidiram pelo internato como maneira de melhor formar meu caráter e deles próprios terem uma folga!
Relutante no início, em pouco tempo havia me habituado à nova vida e podia curtir a liberdade da ausência dos meus pais por perto falando-me a cada instante o que devia ou não fazer. A escola em questão possuía em torno de 150 internos e era dirigida por homens - mais ou menos 10 - aos quais se chamava de Senhores. Todos se reportavam ao Diretor, homem alto e magro, rigoroso e justo; bem mais tarde fiquei sabendo que se tratava de uma Comunidade espiritual com ramificações em outros lugares do mundo.
Havia, neste sítio, uma casa de estilo colonial que servia de residência dos Senhores, e possuía uma grande cozinha e uma sala retangular contendo uma enorme mesa com capacidade para 12 pessoas. Ali aconteciam as refeições dos Senhores e de manhã cedo e ao anoitecer, uma espécie de reunião secreta na qual todos participavam; na parte inferior, no subsolo, dormiam os alunos.
Uma construção exterior, mais moderna, com umas 10 salas de aula e um grande corredor no centro que servia também de refeitório para os alunos completava a bucólica paisagem residencial. Estava sendo construída outra casa que serviria futuramente de dormitório para os alunos, com banheiros exteriores para todos. Na frente, outro salão colado no primeiro seria mis tarde a padaria da escola. Um buraco quadrado para albergar uma piscina estava aberto em frente ao refeitório e salas de aula, mas nunca foi concluída e acabou sendo depósito de galhos secos e servia para esconderijo dos alunos quando a situação o exigia. Havia ainda uma quadra de futebol, de basquete, de ginástica e, ao final, uma pista de aterrissagem de terra para pequenos aviões, que estava permanentemente coberta de mato rasteiro e cuja lateral dava acesso a um poço d'água que servia de ponto final das caminhadas diárias, a uns dois mil metros de distância desde a casa.
A entrada ao colégio se dava por um portão de arame que possuía um guarda-gado, aquele fosso coberto com ripas de madeira grossa, para que os animais de fora não entrassem na propriedade. Isto fazia com que o ônibus que nos levava e trazia diminuísse bastante o andar para fazer a travessia, e nos dava oportunidade de jogar pela janela pacotes com guloseimas, cigarros e outros pertences de menor tamanho que queríamos esconder e que eram vedados de usar na comunidade, a não ser os autorizados e distribuídos pelos Senhores. O cigarro era terminantemente proibido, então usávamos deste engenhoso sistema de jogar no quintal pela janela do ônibus, ir buscar mais tarde quando ninguém olhava, para poder fumar escondidos no mato próximo depois do campo de futebol. Para ninguém descobrir o cheiro, esfregávamos grama úmida e alho cru que já havíamos mastigado, nas mãos e no rosto em volta da boca. Era um horror, más não havia outra alternativa.
O sistema educacional que prevalecia era espetacular, tanto na educação formal, quanto na informal. Sem saber ao certo de que se tratava o sistema de ensino, pelo ritual imposta a quase tudo o que fazíamos, podia-se verificar que era algo diferente do resto da educação tradidional. Sem saber como nem por que, aprendemos muita coisa nova e marcamos o início de uma vida melhor. Nesse colégio, ganhei a primeira menção honrosa de minha vida, por um trabalho literário que escrevi pela insistência de um dos Senhores, professor de Literatura. Depois foi matemática, ginástica, xadrez e outras muitas que jamais esqueci. A essa altura, já podia discutir e filosofar um pouco com meus colegas, e isto me dava novas forças para seguir estudando e aprendendo. Nunca mais parei!
Novamente o destino quis que me afastasse dessa escola, dois anos depois de haver ingressado, mas a bagagem que levei foi fundamental para meu desenvolvimento posterior. Estava me tornando um homem, e isto era muito bom para mim. Mudamos novamente de cidade e acabei meus estudos secundários ali, tornando-me um professor, já que nessa nova escola era a única opção de formatura.
Nesta cidade, para ajudar minha formação, entrei a trabalhar como correspondente de um jornal local de periodicidade quinzenal. Exercia várias funções como a de fotógrafo, distribuidor, crítico, escritor de crônicas e notícias esportivas, motorista, cobrador, captador de propaganda e compaginação do periódico. Aprendi muito nesse tempo e com minha carteirinha de jornalista podia entrar em muitos lugares sem ser incomodado.
Fui para a Universidade aos 17 anos, na cidade grande, de mais de um milhão de habitantes. Que mudança radical! Sempre movi-me em círculos pequenos e esse mundo de gente amontoada me ofuscou o pensamento e a visão. E agora? Tudo era novo e deslumbrante. Aproveitei para ir a todos os cinemas que podia, casas de shows, espetáculos ao ar livre, parques, praças, em fim, a tudo o que me era permitido. Aos 20 dias de chegar havia acabado o parco dinheiro que levara para o mês todo. Quando falei sobre o assunto com minha mãe, ela disse que sentia muito, mas nada podia fazer por mim. Creio que aprendi a lição, por que foi a única vez que fiquei sem o dinheiro reservado para a manutenção de meus estudos.
Seis meses depois mudava de casa novamente e fui morar numa república, numa casona de 2 andares, perto da Cidade Universitária. Éramos 25 moradores nas 8 habitações que havia, aparte do salão-refeitório, cozinha e banheiros. Foi a segunda oportunidade que tive de crescer e me desenvolver. Meus colegas, todos muito bons, estudavam em diversas faculdades o que enriquecia as conversas habituais que um exPadre, filósofo, que cuidava do aspecto moral e espiritual da república, levava para discussão. Platão, Descartes, Shopenhauer, Nietzsche, Teilhar de Chardin, Gurdjieff, Sartre, e outros tantos seres da vasta literatura do mundo, foram abordados nestas tertúlias. Este ex-Padre era adepto da Teologia da Libertação e um tanto revolucionário nas suas colocações sociais, mas como a Igreja não permitia desvios fora do cânone oficial, havia saído ou havia sido excomungado, não lembro bem. Descobri mais tarde que era irmão de meu tio e que havia cursado seu doutorado na Alemanha, sendo considerado um gênio da Teologia e da Filosofia que tanto amava.
A partir desse momento participei de diversas escolas filosóficas, esotéricas e exotéricas, e aprendi muito sobre a vida além da mundo visível, assuntos que o comum das pessoas não fala ou por falta de interesse ou por falta de conhecimento. Eu bebia e mastigava cada frase, cada ensinamento, cada prática, e meu caráter foi se formado e se moldando à nova teoria que nascia em mim. Repetia frases filosóficas de outros, mas já apresentava em palavras minha própria ideia do mundo e das coisas.
Como aluno universitário participei da política estudantil, no centro de estudantes da Faculdade, discutindo com professores, discursando nas salas de aula, nos corredores, no refeitório e onde tivesse oportunidade, idéias de cunho político social. Organizávamos eventos em bairros, trabalhos voluntários em instituições carentes, cuidávamos da cultura local promovendo sessões de cine-arte, teatro de arena, discussões político filosóficas, formação de grupos de estudos sociais e tantas outras atividades pertinentes. Pelo caminho desde minha casa até a sala de aula da Faculdade, na Cidade Universitária, passava em frente da Faculdade de música, de filosofia e de psicologia. Sempre me demorava alguns minutos ouvindo música clássica de ensaios de orquestra e dos alunos de cursos avançados tocando belas sonatas no piano ou outros gêneros musicais. Nas Faculdades de filosofia e psicologia, me inscrevi como ouvinte e assistia muitas aulas, tantas quanto podia, a fim de aprofundar idéias e conhecimentos. Isto durou alguns anos até que comecei minha prática hospitalar.
Como era de esperar dada minha condição de nômade, troquei de residência umas oito vezes nesse período por achar que seria melhor para a fase de vida em que estava vivendo. Cada experiência era marcante e deixou traços indeléveis em minha memória. Continuava com a política e com a escola esotérica, tentando encontrar um tênue elo entre as duas atividades aparentemente contrárias. Muitos diziam que nunca iria conseguir por que eram caminhos divergentes. Mas na minha insistência, sempre encontrava o caminho de união e fazia possível a teoria e a ação simultâneas das duas correntes.
Uma vez um amigo me convidou para montar um negócio. Ele era estudante de cinema e conforme me disse, havia inventado um modelo de fotografia com grande angular - que na época não existia - que podia tirar fotos de paisagens de 180 graus. Sem testar o produto, saímos a oferecer a boa nova a alguns conhecidos de relevante posse financeira, o que podia viabilizar a venda desta invenção. Batemos na porta de um deles, exímio negociante de tecidos, conhecido de minha mãe pela fábrica de roupas que ela possuía. Abriu a porta e apareceu vestindo uma robe de chambre cor vinho, listrada de preto, segurando uma pequena taça de vinho na mão esquerda. Nos convidou a entrar depois que associou minha figura à da minha mãe e nos ofereceu um pouco de vinho. Aceitamos na hora, é claro. Beber alguma coisa na época em que vivíamos era um luxo devido à crise econômica pela que passávamos de forma permanente. Depois que meu amigo e eu bebemos o líquido rubi e frutado de um gole só, ele olhou incrédulo e disse que acabávamos de engolir de forma grosseira um Romanée Conti, 1968, de altíssimo valor de mercado. Ele achava que éramos apreciadores e não vorazes consumidores, mais ainda depois que meu amigo disse a ele que os seus pais possuíam uma adega artesanal familiar em Mendoza. Nos explicou sobre as belezas do vinho e outras amenidades. Um pouco avergonzados saímos pouco mais tarde sem haver oferecido a fotografia para cobrir a parede do fundo da sala de visitas. Nunca mais me aventurei a vender nada com este amigo e nunca soube mais da vida dele.
De minha vida pessoal, namoros, relacionamentos, convivências, amizades coloridas, encontros e desencontros, não falarei porque são coisas íntimas da cada um, devendo respeitar a identidade, a memória e a vida dos atores. Invariavelmente, a maioria das pessoas que lêem o que está escrito em algum lugar, tentam tirar proveito da situação em benefício próprio ou fazer conjecturas sobre este ou aquele assunto que não lhes diz respeito, ou ainda, fazem interpretação errada dos fatos colocados. Desta forma, deixo livrado à imaginação de cada leitor, esta parte de minha vida pessoal e que cada um pense o que quiser sem prejuízo de qualquer resultado.
No fim do terceiro ano da Faculdade entrei como residente praticante no Hospital de Clínicas da cidade. Logo em seguida, pelas minhas conhecidas atividades, me tornei um líder estudantil e assumi a presidência do Centro. Foi uma época muito difícil, de muita convulsão social, de governos militares repressivos e de estrito controle político social. O pessoal matava antes de perguntar qualquer coisa, muitos desapareceram só pela suspeita de terem algum envolvimento político, não se sabia quem era o mocinho e quem era o bandido. Muitas vezes tivemos que vestir a batina verde de doente internado e deitar numa cama da sala dormitório, para despistar à policia que vinha atrás de nós. Manchas de sangue em partes de nosso corpo, provenientes de um tubo de coleta do laboratório, servia para dar mais realismo à situação. Era perigoso mas não havia outra solução
.Minha situação pessoal era crítica, mas me sustentava firme nesse ambiente hostil. Pessoas encapuzadas puxavam uma arma em direção à minha cabeça, colocavam cartazes nos lugares por onde eu passava ameaçando-me de morte. Isto aconteceu muitas vezes no elevador que levava ao terceiro andar onde estava o laboratório, de madrugada e após chamada para atendimento. Perdi muitos amigos e companheiros, que desapareceram e nunca mais foram vistos. Não era nada fácil viver nessa época e as sequelas morais prevalecem até agora no íntimo de cada um dos que passaram por essa situação.
Durante minha época de estudante tive que sustentar minha vida vendendo livros, apostilas, rifas, dando aulas particulares, em residências e em escolas do tipo cursinho, em fim, tive que me virar sozinho devido à situação econômica da minha família. Lembro que almoçava todos os dias no restaurante da Universidade. Quando havia greve de não docentes, não havia comida. Muitas vezes as greves duravam meses e tínhamos que inventar o que comer. Os vizinhos nos davam pão amanhecido e o dono da quitanda separava as folha de verduras que não serviam mais para a venda, e com isso nos alimentávamos. Algum gato da redondeza servia de proteína animal, mas a festa durou pouco, porque o dono da quitanda percebeu que poderia ser um negocio florescente e começou a comprar gatos vivos e vender em pedaços para acompanhar as verduras que nos dava. Nessa época ter amigos cujos pais morassem na cidade ou muitas namoradas ao mesmo tempo significava poder ter uma alimentação decente na casa deles, de forma rotativa e eventual. Não era maldade... era fome mesmo!
Pouco tempo depois me formei e visando ganhar algum dinheiro a mais abri um laboratório na minha cidade natal, na casa onde minha mãe morava. Acabava de completar 25 anos e possuía força suficiente para começar uma vida nova. Quando residente no hospital aprendi muito com a prática laboratorial e suponho que era bom nisso por que o diretor do laboratório central, quando viajava de férias, deixava o seu laboratório particular aos meus cuidados. Isto, além de me dar um dinheirinho extra, me enchia de satisfação pessoal pela confiança profisional.
A montagem do laboratório era dependente de materiais que não possuía, mas graças à minha mãe, que por conta de alguns cheques pré-datados que tinha da sua fábrica, conseguiu pagar o mínimo necessário para montar esta pequena empresa, e pude comecar a atuar como um profissional bioquímico. Trabalhei alguns meses em três cidades adjacentes a fim de aumentar o número de pacientes atendidos e poucos meses depois chegou uma bombástica notícia que me derrubou e me deixou de cama, com altíssima febre e dores pelo corpo todo. Recebi o aviso de que meu nome estava numa lista negra que possuíam as forças repressivas, com o nome de todos aqueles contrários ao regime e que representavam uma ameaça para o país. Eu não devia nada porque nada de errado havia feito, mas sabia que se me pegassem poderia nunca mais aparecer. Urgia tomar uma decisão definitiva.
Deitado na minha cama mandei chamar o médico da cidade, um amigo que se havia formado dois anos antes de mim e que também militava na causa social contra o regime militar. Contei a história e ele me disse que me daria um medicamento para levantar meu corpo, mas que devia ir embora do país. Perguntei se conhecia alguém em algum canto do mundo e ele me disse que tinha amigos médicos em Brasil. Fechei o laboratório, arrumei a única pequena mala da família com a pouca roupa que tinha, carreguei um cobertor quadriculado de marrom e amarelo que guardei de lembrança até hoje, comprei a passagem para o Uruguai a fim de despistar a quem fosse, e em três dias deixava a Argentina. Minha avó me emprestou U$S 400,00 que era tudo o que tinha, e parti para uma nova e diferente experiência de vida: a de exilado político por conta própria, sem motivos aparentes, mas em grande perigo de privação da vida.
Depois de passar dois ou três dias no Uruguai na casa de uma amiga argentina casada com um uruguaio, comprei passagem para o Brasil no próximo dia, atravessando as fronteiras que limitam estes países. Cheguei a São Paulo sem saber falar português e sem entender nada do que se falava na rua. Levava na minha mão um papel escrito com o endereço dos amigos de meu amigo médico. Cheguei de manhã cedo e tomei um taxi até o local indicado. Tive que mostrar o papel ao taxista por que ele não me entendia. Entrei pela porta do prédio, perto do Hospital de Clínicas, às 8 hs. da manhã. Perguntei ao porteiro sobre os amigos de meu amigo e ele me disse que todos haviam saído para trabalhar e que regressariam às 17 hs.
Tentei puxar conversa com ele e a comunicação fluiu mais fácil já que ele estava acostumado ao sotaque “portunhol” dos que moravam no prédio. Fiquei sabendo que havia dois apartamentos com argentinos, um no quinto e outro no oitavo andar. Ele diz que quase todos eram médicos salvo um engenheiro que estava de passagem e que era irmão de outro que ali residia.
Conversamos um tanto até a hora do almoço. Percebi isto quando meu estômago começou a roncar dando sinais de fome. Pergunte a ele onde poderia comer alguma coisa e ele me indicou um bar na esquina anterior ao prédio, perto da Rua Angélica.
O bar restaurante tinha somente quatro mesinhas internas e um balcão com banquetas. Escolhi o balcão, e quando o garçom perguntou o que queria pedi o cardápio para escolher. Vi escrito, dentre outras opções, “prato feito”, que pelo valor cobrado me pareceu razoável. Pergunte o que vinha neste prato e o garçom me disse que continha arroz, feijão, batatas fritas, bife e salada; tudo misturado não me pareceu saudável já que nosso costume era comer primeiro a salada e depois o prato quente. De todas formas pedi o prato para experimentar. Tudo muito bom menos a carne que era dura demais, bem diferente à da Argentina. Pensei que deveria acostumar-me para sobreviver.
Durante os quatro meses que estive no apartamento com os amigos, muitas vezes comi nesse bar, intercalando com a refeição do Hospital das Clínicas, porque às vezes um dos amigos que ali trabalhava como médico, convidava-me para ir a almoçar. Vestia roupa branca emprestada de alguém e ficava com ele na fila do refeitório. Poucas vezes pediam identificação para entrar, então, fazia a festa. No bar, quando a situação econômica ficou crítica, pedia uma porção de arroz e, como o Ketchup era grátis, misturava tudo e comia com prazer. Às vezes o dono do bar disfarçadamente perguntava se queria um bife que um cliente havia deixado no prato e que nem havia tocado. Eu aceitava, sabendo que a história não era verdadeira; ele tinha pena de me ver comer arroz todos os dias e de vez em quando me oferecia uma carne, gentilmente. Quanta saudades dessa fome e das consequências de uma amizade sincera...
As noites passadas no apartamento eram de bastante diversão. Eu tocava violão e animava as festas. Muitos amigos e amigas se juntavam frequentemente, e ao som do violão e cantos argentinos, empanadas, sanduíches, frutas e vinho eram servidos para todos. Como o horário limite para as festa era às 22 hs. sempre tomávamos cuidado de não ultrapassar a meia noite! Ninguém reclamava da situação então continuávamos com a festança. De dia, fruto de não entender, e mal falar a língua, pegava um ônibus urbano e viajava até o fim da linha, ida e volta, só para ouvir falar e acostumar o ouvido. Era uma escola boa e relativamente barata e consegui aprender muitas gírias inexistentes nos dicionários oficiais. Assistia bastante televisão e lia muito sobre sintaxe e ortografia num livro emprestado dos amigos.
Nesses tempos procurar trabalho era tarefa difícil porque sendo estrangeiro, mal falando português, não tendo residência fixa e não conhecendo modernos equipamentos que não existiam na minha cidade e no meu laboratório, as oportunidades diminuíam muito, além do salário que, pela situação de estrangeiro, era o menor possível e sem direito a registro em carteira nem barganha salarial. Um ex padre, que se dedicava a agenciar empregos foi me apresentado e disse-me que teria emprego num laboratório mas que o primeiro salário era dele, como comissão. Precisando trabalhar, aceitei, e três dias depois estava na empresa em entrevista com o dono. Acertamos os detalhes, muito desfavoráveis para mim, e no outro dia estava trabalhando.
Um mês depois, surgiu uma oportunidade de trabalhar na Unicamp mediante uma bolsa de estudos para pesquisa na área imunológica, setor em que já possuía experiência do Hospital de Clínicas, na Argentina. Pedi autorização ao Diretor dizendo claramente o motivo. Ele ficou impressionado pela minha honestidade, já que normalmente o pessoal inventa uma desculpa qualquer para esconder o real motivo. Eu lhe disse que o fato de procurar melhores oportunidades de trabalho não merecia uma mentira. Ele concordou.
Cheguei à Universidade de Campinas e fui direto ao departamento de Imunologia, para falar com o responsável do setor. Para minha surpresa, era um argentino. Insistiu para que aceitasse, pois tinha gostado muito de mim. Apesar de receber quase o triplo de dinheiro comparado ao meu salário, devido à bolsa de estudos, declinei o convite. Não queria por enquanto mais argentinos na minha vida, e não sabia ao certo quem ele era.
Voltei ao laboratório no dia seguinte e fui falar com o Diretor, explicado a situação. Ele me disse que tinha uma oportunidade muito boa para mim. Trabalhar na filial de São José dos Campos, a 90 km. de São Paulo. Me convidou para viajar até lá no outro dia, dizendo que como ele possuía só um olho, eu teria que dirigir até lá. Foi a primeira vez na minha vida que dirigia um carro desse porte, um Ford Landau novinho em folha! Dirigi primorosamente mas muito devagar e chegamos ao destino em pouco mais de uma hora e meia, para sermos recebidos por uma figura bonachona, o Professor Sawaya, que era o responsável por esse lugar.
Após as apresentações de praxe e conversas sobre meu trabalho neste lugar, acertamos que moraria num hotel próximo sendo as despesas pagas pelo laboratório. Almoçamos na casa do Professor e pouco tempo depois voltamos para São Paulo, com a certeza de voltar em poucos dias para começar meu trabalho ai. Meu salário foi aumentado o que me permitiria viver sem tantos problemas nesta nova cidade.
Uma semana depois estava instalado no hotel e começava a exercer minha nova função. O Professor Sawaya e sua esposa Tereza eram ótimos anfitriões e sempre me convidavam para almoçar ou jantar na casa deles. Tereza se destacava como uma mulher culta e estudada, com conhecimentos amplos sobre muitas coisas e podíamos conversar sobre temas e autores diversos com muito aproveitamento por parte de ambos. Sawaya era um grande apreciador de música clássica e de óperas, tendo muito conhecimento sobre ambas. Tocava violoncelo como amador e havia participado como figurante na ópera O Guarani, no Teatro Municipal de São Paulo. Era um citopatologista renomado e como professor universitário havia participado de muitos Congressos e proferido palestras pelo mundo todo, havendo publicado vários livros e trabalhos científicos. Mais tarde escrevemos um livro em conjunto se tornando a primeira obra editada de minha autoria, além das matérias de jornal que escrevera quando adolescente.
Minha vida como morador do hotel durou 15 dias. Não consegui acostumar-me ao ritmo coletivo e às regras impostas, então mudei para a garagem do laboratório que além da entrada que serviria de sala, possuía um quartinho nos fundos. Comprei uma cama com colchão, um pequeno guarda roupas, uma mesa com quatro cadeiras e só. Não havia banheiro e por isto tinha que utilizar o de cima, o do laboratório, que era único e de uso coletivo para pacientes e funcionários. Ali lia bastante, tocava meu violão e alguns rudimentos de flauta doce e pouco depois, de flauta transversal. Arrisquei compor alguma música, mas só de ouvido. Faltava-me estudo teórico e lembrei-me de quando minha mãe me dizia que um dia iria precisar deste conhecimento, para a vida. Na época não queria estudar música; tinha 10 anos de idade e todo um mundo para descobrir.
Meu trabalho era escasso porque o atendimento de pacientes era pequeno e o Professor não queria aumenta-lo. Isto me dava tempo de estudar e sob a direção e acompanhamento dele aprendi a arte da cito-patologia. Possuía um acervo de mais de mil lâminas de vidro com células cancerosas dos mais diversos tipo e milhares de slides que podiam ser apreciados através de um visor portátil manual. Sua biblioteca particular tinha mais de 80 livros sobre o assunto, pelo que a literatura com textos e fotos era farta para pesquisa e aprendizado. Foi muito bom para minha formação e sempre agradeci por isso.
Alguns meses mais tarde conheci Cândida, filha do casal Sawaya e mãe de três filhos. Em pouco tempo estávamos morando juntos, porém mais tarde um pouco, perdemos o emprego por conta dessa decisão. O fato de Cândida morar comigo não estava nos planos de Tereza, então fomos dispensados do laboratório, talvez por ciúmes por parte de ela ou qualquer outra coisa do tipo. Nunca vai se saber pois nenhuma das duas está mais entre nós.
Nessa época conheci uma menina de uns 14 anos que trabalhava na loja do pai - na qual eu sempre comprava alguma coisa para meu modesto lar - a qual viria a ser minha esposa depois que Cândida faleceu. Havia se tornado amiga da família principalmente por haver se casado com um primo do marido de minha filha e de haver compartilhado da escola filosófica que nós frequentávamos, CAFH. Estamos juntos agora.
Após algumas peripécias envolvendo todos os atores, depois de haver aberto um restaurante que se tornaria ícone na comparação entre os outros, e trabalhado em outro laboratório de análises clínicas da cidade, voltei para o que hoje é o nosso laboratório. O adquirimos da matriz de São Paulo, em 1983, depois de havê-lo arrendado durante seis meses. Toda a história dessa aquisição e os motivos que levaram a isso, ocuparia outro livro, então só colocarei isto como resumo da situação que se prolongou por quase um ano e que levou a conformar meu presente. Falar destes fatos poderia abrir feridas que acredito que estejam cicatrizadas e que na realidade foram cruciais para que as coisas acontecessem dessa forma.
Em pouco tempo transformamos a empresa em modelo de vanguarda em tecnologia e em atendimento personalizado, aumentamos o atendimento, ganhamos o respeito de médicos, pacientes e Convênios e avançamos no árduo caminho da vida empresarial tornando-nos um sucesso de empresa na área da saúde e que afortunadamente dura até hoje. Ganhamos muitos prêmios de gestão empresarial, certificamos a qualidade, o meio ambiente, gestão de pessoas, Responsabilidade Social e implementamos um Sistema Integrado de Gestão de fazer inveja a muitas empresas do país e do mundo.
Os filhos que a vida me deu cresceram e frutificaram em netos maravilhosos que deixaram minha existência muito feliz pela sua presença e atuação nos seus próprios campos de trabalho e estudo. A alguns a vida os levou para mais longe, para fazer seus cursos universitários, mas sempre voltam ao regaço familiar onde compartilhamos momentos únicos e sagrados.
Fora a vida pessoal que cada ser humano tem, existe a vida de relação, com o mundo, com outras pessoas, com situações diversas. Falar sobre isto implica em relatar com mais ou menos detalhes tudo o que aconteceu durante esse longo período, o que levaria meses a fio e incontáveis páginas de texto. Por isso, limitei o relato ao mais transcendente e que deixa uma marca indelével no espírito.
Especial destaque merece o trabalho social que desenvolvemos desde a vida universitária. A ideia se faz carne na alma de quem pratica o voluntariado como forma de ajudar aos outros e devolver de alguma mameira tudo o que a sociedade nos deu. Muitos exemplos deste trabalho renderam bons frutos e outros ainda estão em andamento. Por vezes o Poder Público pedala em sentido contrário atrapalhando nossa tarefa, mas faz parte da história e temos que relevar.
Fazer parte da sociedade participando ativamente no seu desenvolvimento é uma meta que nos impusemos desde sempre. O trabalho político, além de ideologias e de resultados, é dever e obrigação de todo ser humano. Participar de grupos e associações que se preocupam com os destinos do país e do mundo é tarefa inalienável do homem.
O cultivo da moral e da ética deve se tornar o objetivo principal de todos visando o bem comum. O sistema político brasileiro está passando por uma noite negra e se alastrando para a vida social como um câncer que tudo devora. Isto é possível graças à complacência dos habitantes do país. Uma terra moralmente sã e cuidadosa de seus deveres e direitos jamais permitiria estes abusos. Em definitiva, temos o que somos, e não adianta reclamar se primeiro não olharmos para dentro de nossa alma e tomarmos algumas medidas necessárias e urgentes.
Este preâmbulo serve para indicar que na minha vida pessoal tenho me esforçado bastante para cumprir estes requisitos, cuidando de não cometer delitos sociais trabalhando de forma contrária a qualquer desordem institucional devida à má administração da moral e dos bons costumes. Participo ativamente de grupos que obram a favor de um sistema melhor e mais digno para o ser humano.
O futuro ninguém conhece nem adivinha, mas nosso trabalho no presente determina a qualidade do porvir. A melhor forma de ter um futuro melhor para todos é realizar um bom presente, participando e denunciando toda e qualquer tentativa de torcer a moral que nos impulsiona para frente. Quando alguém de nosso relacionamento está realizando um ato contrário ao que propomos, temos a obrigação de dizê-lo e manifestar nosso desagrado frente a essa atitude. Um dia nosso interlocutor nos agradecerá a intervenção. Isso é o que tenho tentado fazer nos últimos tempos e que me sinaliza a corrida para que tenhamos um mundo diferente e melhor em pouco tempo.
Daqui em diante, as páginas de minha vida estão em branco. Espero poder continuar a escrevê-las e evidenciar para todos para onde meus passos me levaram. O mistério do porvir permanece no ventre do desconhecido, mas tenho certeza que ao estar escrevendo meu presente com pena de ouro, o futuro será muito melhor do que é hoje.
Até mais...